Um leão por dia
- Abarca Cultural
- 31 de jul. de 2019
- 3 min de leitura
Atualizado: 10 de mar. de 2020
Coluna do Zé

Por Zé Wendell
Ser artista no Brasil é “padecer no paraíso”. Eu poderia até concordar com essa sentença, não fosse pela resistência de tantos artistas que diariamente lutam, não só pela sobrevivência, mas também contra os insistentes atos difamatórios pelos quais nossa classe tem sido vítima nos últimos tempos. Resistimos em grande estilo porque acreditamos no poder transformador da arte e sobretudo na cultura como bem comum de uma nação. É por identidade e liberdade, mesmo que utópica, que ainda lutamos.
Mas digo que não é fácil e, apesar dos pesares, não fugimos à luta. Se tivesse que escrever uma carta para o futuro, por exemplo, diria que o artista da atual Terra Brasilis vive em constante estado de alerta, “matando um leão por dia”, lutando contra a difamação (difundida especialmente através de fake news) e a censura descarada (com filtro) de um governo incrédulo que tenta diariamente nos reduzir a nada.
Não interessa por aqui se o artista necessite comer ou pagar suas contas, tampouco se a arte importa à sociedade. O que interessa aos “donos da razão” é dizer que artista é “tudo um bando de vagabundo, viciado, depravado. Pedófilos que estão sempre pelados expondo suas vergonhas em museus e que mamam nas tetas do governo”. Pois é, eles são rasos e superficiais. Não entendem de empatia e ainda insistem em cercear a liberdade alheia como se a vida só pudesse ser vista por uma ótica. Nesse caso, a ótica mais cretina, a deles. Para completar ainda dizem que somos uma ameaça ideológica a tradicional família brasileira. Uma afronta a moral e aos bons costumes. “Ordem! ”, gritam os hipócritas. É a treva.
É meus caros, o cenário é de guerra. É retrocesso que fala, não é? Um tempo sombrio, de horror, medo e incertezas. Vocês aí, nesse futuro hipotético, mas real, não tem ideia do que é viver e ver isso na prática, diariamente. Daqui só rezamos que algo de melhor tenha acontecido, que esse apocalipse de ignorância e animalidade instaurado no atual presente não tenha destruído a esperança desse futuro. Porque aqui estamos à beira do precipício.
Algumas instituições, das mais “descentes” e importantes à produção cultural já abandonaram o barco. Não aceitam mais determinadas pautas teatrais em seus palcos, por exemplo. Não querem dor de cabeça com os seus chefes, os tais “donos da razão e do dinheiro”. Falar de minorias, nem pensar, só se for muito disfarçadamente. Lgbts, jamais. Assim, os palcos que resistem, resistem com muita coragem e dignidade, aos trancos e barrancos, mas resistem.
Público por aqui? Milagrosamente continuam comparecendo às salas de teatro. Por paixão resistem conosco. Mas, lhes digo que não é nada fácil. Não temos patrocínio e se temos é com filtro. As leis de incentivo à cultura foram extintas. O governo acredita e diz abertamente que vivemos dos aplausos. O levante aqui é por nossa conta. Os artistas têm feito peças até dentro do próprio apartamento. Como pagam o condomínio? Não sei. Se viram nos trinta. Para alguns “sortudos” a família talvez pague porque a maior parte da bilheteria é de formação de plateia. E venhamos e convenhamos, a maioria paga com desconto, ou vem de graça. No entanto não podemos abandoná-los. São eles que amam nossa arte, são eles o futuro.
Enfim, a situação pode parecer triste e pessimista, embora seja real, mas lhes escrevo essa carta com sorriso no rosto e a certeza de mudança. Bem, preciso ir agora, antes que me proíbam de escrever sobre tudo isso. Temo até que "possam estar me hackeando". São especialistas em perseguir tudo que lhes pareça contraditório. Assim fizeram com alguns “comunistas comedores de criancinhas” na Ditadura Militar de 64. E prometo que continuaremos resistindo. “Matando um leão por dia” e lutando pelo amor, pela arte e contra a mentira dos hipócritas de plantão. Ironicamente, ou não, esse é o Brasil do século XXI. Acreditem, parece série de terror do Netflix, mas nem é.

José Wendelll Soares é bacharel em Interpretação pelo curso de Artes Cênicas da Unirio-RJ (2004-2009). Atualmente integra a Cia Omondé de Teatro do Rio de Janeiro.
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