Anestesia
- Abarca Cultural
- 7 de out. de 2019
- 5 min de leitura
Atualizado: 10 de mar. de 2020
Coluna do Zé
Por: José Wendell

O mundo por aqui está bem estranho. Mas a verdade é que eu já cansei dessa desordem. Não a nossa, mas essa camuflada de “ordem”. Cansei de sofrer por ela. Parece que acostuma não é? Apesar dos pesares está tudo bem. Embora esteja tudo caindo aos pedaços sobre nossas cabeças. Mas ao contrário de alguns tolos não acredito que haja perfeição nesse "realismo".
É tudo tão espantoso. Olho em volta e parece uma grande ficção. Estamos todos dentro de um romance trágico e fatídico. A cada clique num desses sites de notícias e eu fico pasma.
Paralisa, revolta. É muita canalhice. Não se assuste. Me resguardo tranquila. Tenho calmantes, aulas de yoga, terapia. Sou privilegiada. Digo isso, mas com pesar. Não consigo aceitar a injustiça. É um espinho na carne.
Hoje cuidei das plantas, embora o ar esteja cada dia mais poluído e seco. Elas continuam cheias de vida. As formigas passeiam pelas paredes do meu quintal numa marcha incansável. Essas sabem viver. Trabalham unidas dia e noite, noite e dia. Aquele mendigo meio profeta continua bradando na esquina dizendo que todos vamos queimar no fogo do inferno. Acredita? Talvez ele tenha razão.
Aquela infiltração do banheiro acabou. Não tem mais. Deus ouviu minhas orações. Até que enfim o vizinho resolveu sair de casa e fez as pazes. Do contrário nem sei. O teto talvez tivesse desabado. O teto não caiu, mas a nossa situação política não é das melhores. O desemprego está mortal. Minha sorte são os doces que ainda fazemos para vender e o seguro de vida. Herança do meu pai. Outro privilegio.
Mas não sou mesquinha. Você sabe disso. Machista. Meu pai. Morreu por conta do sistema. Enfartou de raiva. Ah! O sistema! Sabe aquele travesti simpático dono do salão de beleza? Apanhou tanto que quase morreu. Agora me pergunta porque. Nem saberei te dizer. Crime de ódio provavelmente.
Eu parei de comer manteiga, acho que isso me fez bem. A batata frita que não consigo largar. Você adorava. Agora tomo muito suco verde, corro todos os dias quatro quilômetros. Geração saúde. Só o celular que continua me trazendo aquele mal-estar. Uma falta de ar. Ando meio obcecada com ele. Me deixa ansiosa Parece que a qualquer instante alguém vai me ligar. Tolice. Pânico. Talvez a vida seja só instantes de tragédia. E de espera. Nós que lutamos contra. Talvez a nossa missão seja lutar contra para no final ver quem vence.

Será que somos bons? Não somos. Somos um bando de egoístas. Sempre egoístas. Outro dia li uma coisa sobre o frio e o calor, a pobreza e a riqueza, o bem e o mal. Acontece que a gente que escolhe. Sempre sofri com as escolhas. Meus pensamentos que o digam. Resolvi dar trégua a mim mesma.
Minha cabeça andava muito tumultuada naquela época. Mas foi tão duro conviver com aquele diagnostico. Você sabe. Todo mundo deveria ficar cara a cara com a morte. Antes de morrer, digo. É que é tudo tão perigoso hoje em dia. Evitei até de te enviar e-mail. Seu e-mail é tão antigo. Não acredito que ainda mantem o mesmo e-mail. Eu já mudei o meu mais dez vezes. Cuidado! Hoje em dia eles rastreiam tudo. É um negócio. Parece filme de guerra. É fraude por cima de fraude. Depois que descobri isso fiquei com mais medo ainda. A terapia me ajudou.
Eu chego a pensar que eu era sociopata. Acredita? A vida foi tão dura comigo que não aceitava ninguém a minha volta. Minha família talvez. Quando criança fui abusada pelo meu tio. Te falei. Não lembra? Se tem alguém que eu mataria era ele, mas já morreu. Sabe, ser mulher não é fácil. Ouvi isso de uma amiga. A mulher sofre. Sempre subestimada. E ainda tem que ser bonita. Perdi um ceio. Mas em breve vou repor. Esse mundo é uma piada. Você não acha?
A verdade é que mudei. Acho que a serenidade. Essa coisa do tempo. O corpo sente. Milagre é eu estar viva. Milagre é só uma palavra qualquer que usamos para dizer sobre algo que aconteceu, mas que não sabemos explicar. Maquiavel. Achei desconstruído. Parei de beber coca cola. Também ando me desconstruindo. Mas o álcool ainda é complicado. Café também. Já te falei que estou correndo quatro quilômetros por dia?

É difícil se mover. Sempre estive muito presa a mente. Muitos pensamentos. Ciladas, emboscadas, sabotagens, mentiras, ilusões, devaneios, juízos, um caos. A mente é um campo de batalha. Eu era alguém tão cheia de vida quando te conheci. Também cancelei minha conta no Facebook. Depois crio outra. Para avançar é preciso algum sacrifício. Mas quero que saiba que ainda sou cheia de vida.
Outro dia fiz aniversario. Estou ouvindo Chopin agora. Me deixa mais inteligente. Também ouvi tiros agora. Ou fogos de artifício, não sei. Aqui é zona sul, mas é perto do morro. Estão matando todos os pretos e nordestinos. Uma chacina diária. É guerra. Confundem guarda-chuva com escopeta. Um horror. É aquela coisa, a gente só vê o que quer. Assim acontece.
É aquele papo da bolha. Adormecidos. Envoltos em nós mesmos. Isso é loucura. Como se tudo estivesse normal. São muitas vias, paralelas, transversais. Cansa! Estou assustada. O medo as vezes vem. Tenta me abater. Se disfarça. São desculpas tão medíocres que nosso cérebro inventa, não é mesmo?
Estou bebendo agora. Vinho. Uma taça. Não quero misturar muito com os remédios. Pode me deixar mais louca. A maconha ajuda no tratamento. Mas "fode" minha cabeça. Há polícia lá fora e nem imaginam que a boca de fumo é aqui. Rs,rs,rs. Quase fui presa. Roubei um martelo. Sai correndo. Depois voltei e paguei. Acho que já te falei que estou correndo quatro quilômetros por dia. Desculpa. Sou meio clepta. Somos perversos.
O Seu amigo, aquele "fudidão", me ajudou. Ele tem uns contatos. Escapei fedendo. Fui em audiência e tudo. Depois transamos. E depois ele me confessou que tem HIV. Transamos de camisinha.
Meu cabelo voltou a crescer. Estou forte. Resistindo. Às vezes fico parada tentando lembrar de você. Faz tanto tempo. O que me resta de lembrança já não é mais você. Tem dias que fico dilacerada, mas sorrio. Vida normal. Ninguém nem imagina. Você me acha louca por ficar repetindo coisas?

Difícil é se fazer entender. Outro dia me olhei no espelho. E paralisei. Você é o que você pensa. Mas eu não sou exatamente aquilo que desejei. Embora seja. Compreende? Seu corpo também foge a minha lembrança. Quando lembro de você, logo me foge. Engraçado as vezes penso que você nunca nem existiu. Que é só um desconhecido. Uma
invenção da minha mente doentia. Um alguém onde eu tentei existir. Somos instantes.
Acho que estou toda molhada. Há um oceano de possibilidades. Há muita poesia. Embora eu odeie romantizar o mundo. Acho que eu só queria existir. Ser amada. Mas o amor não existe não, é? E se existe não é isso que pensamos que é. Bom mesmo é a serenidade do Rivotril. Semelhante só o céu. Concorda?
Vazio. A sensação é de vazio. É que ando tão fria. Parece anestesia. Não suma. Dê notícias.
Eu mesma, 23 de setembro, em algum lugar por ai.

José Wendell Soares é bacharel em Interpretação pelo curso de Artes Cênicas da Unirio-RJ (2004-2009). Atualmente integra a Cia Omondé de Teatro do Rio de Janeiro.
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